quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Descrição Babélica

   A cor azulada dos círculos, que nada tinham de perfeitos, fazia-me lembrar memórias já esquecidas, horas perdidas a contemplar o mar gélido nas estações frias.

    O laranja parecia ganhar vida ao misturar-se com o amarelo, produzindo novas cores que cativavam o meu olhar. Influenciada pelo inebriante conjunto de cores, a minha mão cedeu e toquei levemente na áspera tela de cor amarelada, possivelmente consequência da sua idade. Deslizei o meu dedo pela pintura que parecia ter ganhado uma nova textura, até que, de repente, senti algo mais “sólido”: a moldura era de uma cor semelhante à dos móveis que eu tinha no meu quarto, mas com uma série de detalhes e pormenores singulares. Então tive o instinto de me afastar e fiquei assim, parada durante alguns largos minutos, a olhar para o confuso quadro. Foi nessa altura que compreendi a complexidade desta obra de arte que no meio de árvores deixava escapar uma luz e leveza que só alguns corações poderiam entender.

Ana Carolina M.


quinta-feira, 27 de junho de 2013

Autorretrato (I)


Autorretrato (à maneira de Bocage):



Magro, de olhos castanhos

Baixo, alegre e calmo

Com pés nem grandes nem pequenos

Eu, Gama, na escola atento

De camisola verde com pequenos tubarões
De lápis na mão

A pensar

Nos tempos livres
Fã da cozinha
Pouco interessado
Em cantoria

Eis Gama
Cantarolando
E falando
Sobre si

Não pensando no poema perfeito,
Eis Gama, a fazer algo com jeito.

João G.


terça-feira, 25 de junho de 2013

Tu és (I)


Dísticos a partir de um poema de Carlos Marzal:


Tu és
A personalidade que me cativa

Tu és
A boca que me hipnotiza

Tu és
A boca de um revólver que o meu coração enfatiza


Fábio F. B.


domingo, 23 de junho de 2013

O Sr. Bleany I


Reescrita do poema “O Sr. Bleaney”, de Philip Larkin (em itálico o original):

O Sr. Bleaney

“Era este o quarto do Sr. Bleaney. Viveu aqui
enquanto trabalhou para a Bodies, até
que o transferiram.” As cortinas puídas de pano às flores
caem a doze centímetros do peitoril,

da janela vê-se um terreno com prédios em construção,
cheio de mato e lixo. “Era o Sr. Bleaney
quem me cuidava do jardim, saía-se mesmo bem.”
Cama, cadeira de pau, lâmpada de sessenta volts, nenhum cabide

atrás da porta nem espaço para livros ou malas –
“Fico com ele”. E assim acontece que me deito
na cama onde o Sr. Bleaney se deitava, e apago os cigarros
no mesmo pires de souvenir, e encho

os meus ouvidos de algodão para não ouvir
o aparelho palrador cuja compra sugeriu.
Conheço os seus hábitos – a que horas descia,
a preferência por molho que não fosse de carne, porque

fazia mal à saúde, o vagar dos seus passos, a
postura calma, o cabelo grisalho. Mas
tudo cessou: cessou o aparelho palrador, os
seus passos, a sua fala encavalitada e bruta

mas sempre doce e reconfortante. Para onde
ir agora? O que fazer? Se o Sr. Bleaney
aqui estivesse mandar-me-ia dar uma curva por
estar a ter uma espécie de crise existencial. Enfim.

Retiro o algodão dos ouvidos e vejo as horas: quatro
da tarde. Não tenho fome, nem sede, nem me apetece
sair. Tenho tempo para pensar mas não o faço. Em
vez disso atiro-me para a cama e para um sono profundo.

Teresa R.


quinta-feira, 20 de junho de 2013

A porta


Chegou,
finalmente,
à porta de casa.
Tentou abrir a porta,
mas não conseguiu.
Desistiu.
Foi à janela para ver o que se passava,
mas apenas via negro.
Tentou abrir a janela,
mas novamente estava trancada.
Desistiu.
Tentou subir ao telhado,
mas era muito alto.
Era de noite, mesmo de noite
mas mesmo assim
foi ao vizinho pedir a escada.
Já lá em cima tentou
entrar mas não passava na chaminé.
Desistiu.
Muito pouco conseguia ver da rua,
mas encontrou um banco onde se deitar.
Tentou contrariar o sono,
mas estava mesmo cansado
e acabou por desistir e adormecer.
Durante a noite
sonhou que tinha sido
assaltado e agredido,
e levado para um sítio estranho,
que desconhecia por completo.
Quando acordou,
viu que não tinha sido apenas
um sonho.
Acordou não sabia onde,
nem sabia como tinha ido lá parar.
Não havia ninguém a quem perguntar.
Percorreu quilómetros
até encontrar alguém.
Tentou perguntar a uma senhora,
mas ela não conseguia perceber.

Apanhou transportes,
boleia,
e roubou,
e assaltou.
Até que chegou a um sítio que conhecia.
Aí sim, já conseguia perguntar
e as pessoas conseguiam perceber.
Apanhou um táxi até casa.
Chegou à sua rua,
e percebeu que na outra noite
se tinha enganado na porta.

Bernardo M.